Catarina Juliana e Pedro João
Estamos de volta e com novidades. Duas estudantes chegam à equipe: Ana Clara Liberato (1º ano do Curso Técnico em Agroecologia) e Cailaine Vitória (2º ano do Curso Técnico em Informática). Sejam bem-vindas!
Nesta edição inaugural da 2ª temporada da Saravá temos a honra de contar com o professor Daniel Precioso que nos fala sobre suas pesquisas relacionadas às irmandades pardas no contexto do Brasil Colonial. Entre outros aspectos, o pesquisador compartilha reflexões realizadas a partir de personagens de trajetórias singulares. Vamos à entrevista.
Olá, prof. Daniel. É um prazer imenso contar com a sua participação na edição de reestreia do Projeto Saravá, referências pretas! Para iniciar a nossa conversa, gostaríamos que falasse um pouco sobre sua trajetória acadêmica.
O prazer é meu! Uma satisfação participar do Projeto Saravá! Me formei em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em 2006. Após uma rápida experiência como professor do ensino fundamental na rede pública de Mariana-MG, ingressei no mestrado em 2008, na Universidade Estadual Paulista (UNESP-Franca). No mestrado, dei continuidade às minhas investigações iniciadas no bacharelado em História da UFOP: as condições de vida e os processos de formação identitária dos grupos de alforriados (e seus descendentes) na sociedade mineira colonial. Desde o início da minha graduação, chamou a minha atenção a presença destes grupos nas sociedades escravistas brasileiras, algo em grande medida ausente da narrativa didática histórica – ainda muito tributária de uma visão polarizada entre brancos/senhores versus negros/escravos. Ao longo das aulas de História do Brasil I e II e de História de Minas Gerais na UFOP me dei conta de que a presença dos alforriados (e dos seus descendentes, já nascidos livres) era marcante na sociedade colonial brasileira. Elegi, então, o estudo de um segmento específico dessa população: o dos pardos. O termo designava tanto os mestiços de preto e branco como todos os livres não-brancos independentemente da “cor”. Minha dissertação de mestrado foi defendida em 2010, tendo sido premiada pela UNESP e publicada pelo selo Cultura Acadêmica (da Editora UNESP) em 2011 com o título Legítimos vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803). Este é o meu trabalho acadêmico mais citado.
Ainda em 2010, ingressei no doutorado na Universidade Federal Fluminense, onde estudei a formação, por parte da população não-branca das vilas mineiras coloniais, de ordens terceiras (associações religiosas católicas ligadas a ordens regulares e que possuíam privilégios espirituais e sociais). Estas associações eram geralmente monopolizadas pelos brancos no império colonial português, constituindo a formação de instituições desse tipo por homens “de cor” uma exceção, residindo justamente aí a originalidade e a contribuição da minha pesquisa. A tese foi defendida em 2014, com o título “Terceiros de cor”: pardos e crioulos em ordens terceiras e arquiconfrarias (Minas Gerais, 1750-1808). Neste mesmo ano fui aprovado num concurso público para professor do ensino superior do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás (UEG-Quirinópolis), onde me encontro atuando como docente até a presente data. Nesta instituição, desde 2015, leciono cursos sobre História Moderna, História do Brasil I, História da África, História e Cultura Afro-Brasileira, além de coordenar projetos de pesquisa, dentre os quais, “Práticas religiosas de africanos no Atlântico Sul – Brasil e Angola (Século XVIII)”. Desde 2019, integro o Programa de Pós-Graduação em História (stricto sensu) da UEG-Morrinhos, orientando mestrandos do programa e, desde 2021, coordeno o Centro de Documentação Digital: História e Memória Afro-Goiana, cujo objetivo é reunir, classificar e disponibilizar documentos referentes ao passado africano no Estado de Goiás.
Minhas pesquisas atuais deram origem a meus dois livros mais recentes: Catarina Juliana: uma sacerdotisa africana e sua sociedade de culto no interior de Angola – Século XVIII (Paco, 2021) e Travessias: um escravo marinheiro convertido ao protestantismo nas malhas da inquisição (1614-1637) (Pimenta Cultural, 2023). Estes livros resultam de pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto de pesquisa acima mencionado, que coordeno desde 2019, e que tem por objetivo analisar as religiosidades africanas no atlântico português.
Entre os temas pesquisados ao longo de sua trajetória acadêmica, como mencionado, você estudou as chamadas irmandades pardas no contexto do Brasil Colonial. Qual a importância do estudo desses grupos para entendermos a complexidade social e étnica do Brasil daquele período?
As irmandades eram associações religiosas católicas integradas pelos leigos. Elas desempenharam um papel muito importante na devoção popular portuguesa desde a Idade Média. Transplantadas para os espaços coloniais ultramarinos portugueses no contexto da expansão marítima moderna, elas se expandiram e adquiriram grande capilaridade no Brasil colonial. Todos os grupos sociais possuíam irmandades de seus próprios grupos. Entre as populações negras, irmandades como a do Rosário, de São Benedito, de Santa Ifigênia, das Mercês, de Guadalupe, entre outras, desempenharam o papel fundamental de difundir o catolicismo entre os africanos e seus descendentes. Muitos destes santos eram pretos, como São Benedito e Santa Ifigênia, ou “pardos”, como São Gonçalo Garcia. Ter santos das “cores” dos participantes era um elemento importante para a identificação e coesão do grupo. Mas estas associações não apenas serviam para acomodar a população negra ao catolicismo português, servindo ainda como espaço de sociabilidade dos próprios negros e mulatos. Sendo um dos poucos espaços institucionais legalmente constituídos para esses grupos, as irmandades serviram como canal de expressão de anseios dos alforriados e seus descendentes. É justamente sobre este prisma que estudei a Irmandade de São José dos Homens Pardos de Vila Rica em meu mestrado. Era um estudo de história social, mas que elegeu uma irmandade como lócus de observação do grupo analisado. Por meio da participação nessa associação, uma “elite” (grupo bem sucedido) de homens e mulheres pardos passaram a pressionar as instituições do império português para terem reconhecido o seu lugar social. Geralmente associados à vadiagem e promiscuidade (associada ao termo “mulato”), os mestiços e livres não-brancos em geral passaram a se identificar como “pardos”, uma categoria social que denotava conformidade social e moral. Neste sentido, é interessante observar que São José foi evocado pelos pardos de Vila Rica como protetor do “bom casamento” (e não como protetor dos carpinteiros, como a historiografia acreditava), sendo muitos pardos que integravam a irmandade, de fato, casados e pais de filhos legítimos. Este grupo procurava um lugar na hierarquia social da sociedade colonial mineira, mas pela via da assimilação cultural, pois procuravam se distanciar do passado africano e adotar comportamentos morais e sociais dos brancos. Esta estratégia surtiu resultados, mas não fez cair as barreiras sociais que separavam não-brancos livres dos brancos. Provas disso são as ordens terceiras não-brancas que estudei no doutorado: impedidos de ingressar nas ordens terceiras brancas, os pardos e crioulos tiveram que fundar as suas próprias – não sem grande oposição das elites brancas, que pretendiam monopolizar estas associações por julgarem serem exclusivas de seu grupo. Desse modo, constatei que a estratégia de assimilação – mobilizada pelos pardos – permitia certo reconhecimento social, mas não desembocava em igualdade com os brancos, pois a cor e a fama pública sempre apontavam para o passado africano (por mais que se tentasse apagá-lo).
Em seus dois últimos livros, você tem se ocupado em analisar a trajetória de indivíduos negros que fugiram do jugo da escravidão. Diferentemente dos estudos sobre alforrias, isto é, da conquista da liberdade, você tem utilizado a categoria “figuras atlânticas” para qualificar tais indivíduos. Poderia explicar este termo?
O estudo do acesso à liberdade pelos escravizados no império português é uma constante na minha agenda de pesquisa. Porém, as minhas pesquisas atuais se inserem, sobretudo, no campo da história das religiões – muito em virtude da minha participação na linha 2 do PPGHIS-UEG. Se as associações religiosas sempre estiveram nas minhas pesquisas acadêmicas, até o meu doutorado era a história social que sobressaia. As irmandades serviam, como já mencionei, como lugar de observação dos grupos de libertos e livres “de cor” (não-brancos). Agora tenho me atentado mais para a questão religiosa, sobretudo, envolvendo personagens africanos e afrodescendentes. A religião poderia ser um artifício para se inserir socialmente: nas irmandades católicas, os alforriados conseguiam adquirir respeitabilidade e reconhecimento social. Já como sacerdotes de religiões africanas, poderiam igualmente – mas pela via contra-hegemônica – adquirir bens e prestígio, o que levava à alforria e até a aquisição de escravos e bens, como é o caso da sacerdotisa Catarina Juliana, que estudei em livro recentemente publicado. A categoria “figura atlântica” se refere aos africanos (e seus descendentes crioulos) da diáspora que circularam pelo mundo atlântico português. Catarina Juliana, nascida em Luanda no século XVIII e moradora no Presídio de Ambaca (Angola), uma vez liberta, acompanhou seu ex-senhor e amante à Bahia e à Portugal. Pedro João, um escravo marinheiro crioulo, nascido em Olinda no início do século XVII, acabou preso por um corsário inglês e levado para o sul da Inglaterra. Uma vez lá, se converteu ao protestantismo, se casou e teve um filho, mas continuando a trabalhar no mar, foi preso pela inquisição no porto de Lisboa (porque havia sido batizado católico em Pernambuco). Estes personagens são “atlânticos” porque suas vidas foram irremediável (e dramaticamente, no caso de Pedro João) marcadas pela diáspora, ocasionada pela escravidão transatlântica moderna, que os levou a transitar entre a África, o Brasil e Portugal.
Em 2021 você publicou um livro sobre a trajetória da sacerdotisa angolana Catarina Juliana. Poderia falar sobre como chegou até essa personagem e como ela amplia a nossa percepção sobre as relações entre escravidão, liberdade e religiosidade no contexto da África portuguesa?
Pelos idos de 2018, quando pesquisava no Digitarq (plataforma digital do Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa) em busca de africanos processados por “feitiçaria”, me deparei com o processo de Catarina Juliana. Logo me dei conta do seu valor etnográfico, já que o códice possuía mais de 300 páginas manuscritas e as entidades incorporadas no terreiro de Catarina Juliana, bem como os tipos de sacerdócios e rituais, eram nomeados em língua quimbunda (falada pelos ambundos, em Luanda e em seus arredores). Vislumbrei ali um instigante estudo de caso, em perspectiva microanalítica, da sociedade religiosa dessa ex-escrava angolana, que esteve ativa no Presídio de Ambaca (interior de Angola) durante a década de 1740. O que sobressai do estudo das religiões nativas em Angola durante a época moderna é a tenacidade das práticas religiosas africanas (já apontada por pesquisadores como James Sweet). Apesar de muitos angolanos moradores das áreas dominadas pelos portugueses professarem o catolicismo (como foi o caso de Catarina Juliana), as práticas religiosas tradicionais angolanas se mantiveram muito ativas – ao ponto de autoridades brancas, como João Pereira da Cunha, capitão-mor do Presídio de Ambaca e amante de Catarina Juliana, também aderirem a elas). Luiz Felipe de Alencastro já havia chamado nossa atenção para o fato de que a atividade missionária católica na África Central havia malogrado (mesmo com um breve êxito no antigo Reino do Congo), o que explica a concentração dos esforços das ordens missionárias católicas no Brasil e a defesa da escravidão (como em Padre Vieira) como forma de resgate das almas “pagãs” africanas. O caso de Catarina Juliana demonstra que o savoir faire religioso era uma arma importante para alcançar a liberdade, obter status e bens. Sacerdotes africanos conseguiam, mesmo dentro das possessões portuguesas, adquirir reconhecimento e prestígio pela eficácia das suas práticas religiosas, o que redundava em compra da alforria e aquisição de escravos e bens. Catarina Juliana passou da condição de escrava para a de liberta, de escrava para a de senhora. Como muitas negras libertas do espaço marítimo português, Catarina trazia no corpo joias (algumas com significado religioso, como as feitas de corais), patuás e balangandãs.
Neste ano, em 2023, você publicou mais um livro de uma “figura atlântica”. Desta vez, analisou a trajetória do marinheiro Pedro João, escravizado de origem africana que veio para o Brasil, depois Inglaterra e Portugal. Conte-nos como em suas pesquisas surgiu este personagem e por que o seu interesse nele?
O processo de Pedro João também foi encontrado no Digitarq. Meu interesse sobre este personagem – para além da sua trajetória fascinante e trágica – consistiu no fato dele integrar as duas áreas em que eu atuo como professor e pesquisador: História Moderna e História da África. Ele foi um escravizado que viveu dramaticamente as reformas religiosas da época – e consequentemente a crescente confessionalização das potências europeias de então. O processo de Pedro João nos oferece um raro vislumbre da mentalidade religiosa de um negro escravizado. Convertido ao protestantismo após ser preso em alto mar por corsários ingleses e levados ao sul da Inglaterra, ele acabou preso pela inquisição portuguesa em 1634 após aportar em Lisboa, por ter nascido em Olinda e lá se batizado católico. Nos seus interrogatórios, podemos observar como ele se posicionava sobre temas importantes das reformas: a infalibilidade papal, os sacramentos, o culto aos santos e à Nossa Senhora etc. Constatei que, com o vai e vem (de Portugal para a Inglaterra, do Catolicismo para a Igreja Reforma Inglesa), ou seja, com as suas várias “travessias” (de mares, mas também de religiões), Pedro João acabou por formar uma mentalidade religiosa compósita, a meio caminho entre o catolicismo, no qual foi batizado em Pernambuco, e o protestantismo, que se viu obrigado (e depois convencido) a abraçar em Plymouth e Millbrook (na Cornualha). Ao ser questionado sobre os sacramentos, Pedro João disse que só acreditava no Batismo e no Matrimônio. Ora, sabemos que as igrejas reformadas não mantiveram a sacralidade do Matrimônio, mas apenas (algumas delas) do Batismo e da Eucaristia. Este é apenas um exemplo do modo como Pedro João absorveu as prédicas inglesas, acomodando-as com o seu catolicismo de nascimento.
De que maneira personagens como a sacerdotisa Catarina Juliana e o marinheiro Pedro João complexificam os estudos sobre as trajetórias de pessoas negras escravizadas durante a Modernidade?
A trajetória de Catarina Juliana ajuda a lançar luz sobre as práticas religiosas angolanas, suas entidades e sacerdócios, fazendo-nos pensar para além do termo guarda-chuva “calundus”. Também aponta para a ancestralidade – contestada por alguns dos pioneiros dos estudos do negro no Brasil, como Édison Carneiro e Roger Bastide – das entidades angolanas, tais como Mutacalambo, Quibuco e Gangazumba – as quais ainda hoje se manifestam nos terreiros brasileiros de candomblé angola. Também é possível verificar similaridades da “magia” usada por Catarina Juliana e os “trabalhos” das umbandas atuais. Mas isso tudo sem traçar uma linha direta e a-histórica entre estes rituais setecentistas e as umbandas e candomblés atuais. Seja como for, o estudo sobre Catarina Juliana lança luz sobre a matriz angolana dos “calundus” coloniais.
Já Pedro João indica o drama de consciência vivido pelos escravizados, que se viam obrigados a abraçar a religião dos seus senhores. Também representa um contra-efeito da crescente confessionalização da época moderna, na linha que Stuart Schwartz trabalhou em Cada um na sua lei. As viagens marítimas acabavam por levar as pessoas a vivenciarem diferentes religiosidades, formando mentalidades “semitonais” (para usar o termo de Jean Delumeau), que fugiram à estrita confissão que os reis absolutistas conclamavam.
Os estudos de caso – como os de Catarina Juliana e Pedro João – permitem, finalmente, que nós enxerguemos nuances que uma vista panorâmica da escravidão não permite. Estudos em escala microanalítica permitem a observação de dinâmicas que escapam a observações históricas macroanalíticas.
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sobre o Marco Temporal.Agradecemos imensamente ao professor Daniel Precioso pela entrevista.
Agradecemos a você por nos acompanhar até aqui. Caso queira fazer críticas/sugestões, nos escreva, por favor, em saravareferenciaspretas@gmail.com : )
Créditos
Equipe: Ana Clara Liberato Costa; Cailaine Vitória Paraguai dos Santos; Weder Ferreira e Higor Mozart
Financiamento: Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais | Projetos de Ensino - Ações Afirmativas - Edital Nº 28/2022.
Coordenação: Higor Mozart e Weder Ferreira